|
|||
O dualismo pulsional entre a rejeição à gravidez e o desejo de engravidar é um aspecto todo especial das situações de grande ambigüidade típicas da natureza e da constituição feminina, possuindo, inclusive, notórias bases biológicas e psicofísicas. Na mulher, a problemática relativa ao confronto entre o seu lado afrodisíaco e o instinto maternal ( seu lado demétrico ) é muito complexa, e assim é perfeitamente compreensível a existência do conflito. Ante a esta situação, costumo salientar que a própria natureza feminina se divide em duas "metades": uma fica mais ligada ao seu lado afrodisíaco, e a outra ao instinto maternal. ( Para maiores detalhes sobre este assunto, ver "A Possibilidade de Engravidar e suas Implicações para a Mulher".) O erotismo feminino é, em boa parte, um auto-erotismo relacionado ao próprio corpo e à estética deste, caracterizando-se por um forte componente narcisista. Isto cria nas mulheres uma grande preocupação com a preservação da estética e da boa forma de seus corpos - vide o enorme empenho que elas dedicam a se embelezarem. Por outro lado, para o instinto maternal ser satisfeito, é necessário um considerável sacrifício do corpo feminino ( isto sem falar nas demais implicações e problemas decorrentes da maternidade em outras áreas da vida da mulher ). Aqui está, a meu ver, a principal razão da ambigüidade feminina com relação ao desejar e ao rejeitar a gravidez. É um inegável fato médico que a gravidez e o parto de muito sacrificam a mulher visto que, além da grande sobrecarga fisiológica e até mesmo do risco de vida que acarretam, provocam no seu corpo intensas distorções e estiramentos de tecidos que nem sempre retornam completamente ao normal durante e após o puerpério. Este fato entra em choque com o grande empenho feminino em preservar a estética, a forma e até mesmo a saúde do seu corpo. Sob o ponto de vista corpóreo, a gestação e o parto não beneficiam o corpo da mulher em quase nada - exceto por uma certa redução na incidência do câncer de mama ( ver Nota 1 ). Na realidade, a gestação e o parto são muito mais prejudiciais à mulher, pois, como vimos, implicam em considerável "agressão" anatômica e fisiológica ao seu corpo. Este dualismo das atitudes femininas com relação ao evitar e ao desejar a gravidez tem diversas consequências, tanto na vida da mulher como na própria prática ginecológica, entre as quais podemos citar o uso irregular dos anticoncepcionais, a ocorrência de gestações conflituadas e o problema do aborto. Falemos então agora sobre o aborto. Considero o direito à interrupção de gestações indesejadas, isto é, o direito ao aborto, como um direito fundamental da mulher, e que inclusive se relaciona com a própria preservação do corpo feminino contra os pesados sacrifícios que a gestação e o parto impõem a este. Aqui, os tão debatidos direitos do embrião não podem prevalecer sobre os direitos da mulher que o abriga em seu corpo - corpo este que terá de ser consideravelmente sacrificado para que o embrião se desenvolva e nasça - ainda mais se tal ocorre contra a vontade da mulher. Os aspectos lesivos da gravidez e do parto para a mulher costumam ser sempre "ignorados" por aqueles que, muitas vezes de forma fanática, são contra a legalização ou descriminalização do aborto. Entretanto, como disse há pouco, estes aspectos lesivos constituem um inegável fato médico, uma inegável realidade médica, e todos nós, ginecologistas, os conhecemos muito bem. Vivemos em uma cultura que mitifica excessivamente as glórias da maternidade e tenta não ver o seu lado negativo - e tudo na vida tem tanto o seu lado positivo, como o negativo. Apesar dos seus aspectos gratificantes e construtivos quando inteiramente desejada, temos de reconhecer que a gravidez também apresenta consideráveis aspectos lesivos. Quanto ao reconhecimento deste fato quero chamar a atenção para que, dependendo da ótica através da qual vemos uma determinada situação, a realidade pode aparecer diante de nós em diferentes formas e, assim sendo, aspectos usualmente não percebidos da mesma podem adquirir feições inteiramente novas. Pode parecer chocante o que vou dizer mas, biologicamente ( apesar de "naturalmente" ), o comportamento do embrião em relação ao organismo da sua hospedeira é de caráter francamente espoliativo. E o parto, o nascimento, é violento, tanto para a mãe quanto para a própria criança ( ver Nota 2 ). As diversas seqüelas que a gestação e o parto podem deixar no corpo feminino são, como já disse, muito bem conhecidas de todos nós, ginecologistas, e também das próprias mulheres. Assim, é necessário desejar muito ter um filho para que todos estes sacrifícios e riscos inerentes à gravidez e ao trabalho de parto possam ser suportados de bom grado e com satisfação pela mulher, e para que a criança seja acolhida com amor. Além deste aspecto da preservação do corpo feminino contra o que chamo de "agressões fisiológicas da gravidez e do parto", existem todos os outros motivos já bastante discutidos por todos e que também dão, a meu ver, o pleno direito à mulher ao aborto. Porém, parece-me que os fatos aqui expostos ( freqüentemente não lembrados ou não conceituados corretamente pela maioria dos que debatem a questão ) é que podem colocar o ponto final na discussão, reconhecendo de uma vez por todas este direito fundamental da mulher com relação ao seu corpo. É preciso que se compreenda que, ante a ocorrência acidental de uma gestação não desejada, a única forma de a mulher se preservar dos danos corporais que a evolução da mesma lhe acarretará é o aborto. E aqui, como já disse, dada a situação toda peculiar do embrião, os direitos deste não podem prevalecer sobre os da sua hospedeira. Com relação a uma gravidez que é deixada evoluir sob condições de forte rejeição, eu também gostaria de salientar que as implicações deste fato para a criança que irá nascer são também consideráveis, não devendo, portanto, ser negligenciadas. Lamentavelmente, este é outro aspecto que aqueles que se opõem ao direito da mulher ao aborto ingênua ou tendenciosamente costumam esquecer. Fazendo um breve retorno ao tema da ambigüidade pulsional da mulher com relação ao rejeitar e ao desejar a gravidez, deve ser aqui enfatizado que a não conscientização pela maioria das mulheres desta natural situação de ambigüidade tem diversas implicações na prática ginecológica. Entre elas, podemos citar: 1) o uso incorreto dos anticoncepcionais, com todas as preocupações daí decorrentes, o que cria várias dificuldades para uma vida sexual gratificante e tranqüila; 2) a frequente ocorrência de gestações indesejadas ( ou desejadas por um lado e rejeitadas pelo outro, consciente ou inconscientemente ) que têm de ser resolvidas através do aborto; 3) os problemas de gestações que são deixadas evoluir sob forte rejeição e, conseqüentemente, dentro de um quadro emocional adverso. Nota 1: É fato bem conhecido que, de acordo com vários estudos estatísticos, mulheres que têm mais de dois ou três filhos - principalmente se a primeira gestação ocorrer cedo na vida - apresentam uma menor incidência de câncer de mama. Do ponto de vista corporal, este parece ser o único aspecto benéfico da gravidez para a mulher. Esta relativa proteção é devida aos padrões hormonais típicos da gravidez e às suas ações sobre as estruturas glandulares mamárias. Assim mesmo, considerando-se a alta incidência da doença, o número de mulheres com filhos e que vêm a desenvolver câncer de mama também é enorme. Nota 2: Quanto aos aspectos traumáticos do parto pélvico para a criança, ver os estudos de Stanislav Grof acerca das "matrizes perinatais do inconsciente". De acordo com Grof, elas consistem em conteúdos psicológicos inconscientes predominantemente traumáticos claramente relacionados às fases do nascimento, e costumam emergir associados a elementos arquetípicos e mitológicos, sendo detectados à pesquisa psíquica profunda ( Grof, S. - "Além do Cérebro - Nascimento, Morte e Transcendência em Psicoterapia" - McGraw-Hill, São Paulo, 1988 ). P.S.:
Este texto contém uma abordagem mais aprofundada de alguns tópicos
de "A Possibilidade de Engravidar
e suas Implicações para a Mulher". Nelson Soucasaux
é ginecologista. Formado em 1974 pela Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de diversos trabalhos
publicados em revistas médicas e dos livros "Novas
Perspectivas em Ginecologia" e "Os
Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo
e Arquétipo", publicados pela Imago Editora, Rio de
Janeiro, 1990, 1993.
|