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Como observei no meu supracitado livro "Novas Perspectivas em Ginecologia", um dos problemas fundamentais da natureza feminina é o da dualidade pulsional entre a atitude de não querer engravidar ( isto é, da rejeição à gravidez ) e a de desejar engravidar. O relacionamento das mulheres com esta questão é profundamente ambíguo, e aqui chegamos ao ponto em que, de certa forma, a própria natureza feminina como que se divide em duas "metades": uma fica mais ligada ao Eros ( ao lado afrodisíaco da mulher ), e a outra ao chamado instinto maternal ( ao lado demétrico da mulher ). Dizendo de outra forma, uma refere-se à figura arquetípica da "mulher sedutora", e a outra à da mãe. Aqui alguém poderia argumentar que a maternidade seja uma consequência do Eros, porém é fato por demais conhecido que esta, como fenômeno primariamente biológico, pode ocorrer até sem o desenvolvimento do aspecto relativo ao Eros. Uma mulher pode ser mãe mesmo sem ter desenvolvido devidamente o seu lado afrodisíaco, e existe um número enorme de casos que demonstram bem este fato. Creio, portanto, que é válido considerarmos a existência destes dois princípios de natureza diversa no sexo feminino, ainda que eles possam se integrar e mesmo se completar. Há mulheres que valorizam mais a sua natureza afrodisíaca, outras a maternal. Podemos observar que as mulheres modernas, na sua maioria, apenas desejam engravidar e ter filhos, assim como o fazem, em relativamente poucos momentos no todo de suas vidas e, na maior parte do tempo, a gravidez é indesejada e evitada. Quando da ocorrência acidental de uma gestação, esta é quase sempre interrompida através do abortamento provocado. Isto significa que, de um modo geral, na mulher moderna e mais sofisticada, o componente erótico e afrodisíaco predomina sobre o maternal durante a maior parte do menacme. Por outro lado, existem aquelas que desviam quase toda a sua libido para a maternidade, e se realizam principalmente desta forma, valorizando muito pouco o seu lado afrodisíaco. No outro extremo, existem aquelas que não apresentam nenhum instinto maternal, e que não querem nunca ter filhos. Em relação a essa dualidade pulsional da mulher entre o lado afrodisíaco e o maternal, cabe observar que o erotismo no sexo feminino é, em grande parte, um auto-erotismo relacionado ao seu próprio corpo e à estética deste, e que o instinto maternal exige, para se realizar, um considerável sacrifício do corpo da mulher. Aqui está, a meu ver, a base principal desta ambiguidade feminina no que se refere à sua capacidade reprodutora. A nossa cultura vem incorrendo, há séculos, no erro de considerar a reprodução como a finalidade básica da sexualidade. Esta distorção tem diversas origens, desde conceitos religiosos, até a visão "cientificista" puramente biologizante do ser humano. Porém, o fato óbvio é que, neste, a reprodução, psicológica e existencialmente, não é, de forma nenhuma, a finalidade principal das pulsões sexuais. A sexualidade humana tem as suas próprias razões e propósitos completamente independentes da reprodução. Esta última passou a ser apenas mais um fato, ou uma potencialidade, em meio ao complexo e vastíssimo campo da atividade sexual humana. Grande parte das vezes é até um "acidente" ligado a esta. No que se refere especificamente à mulher, observemos que o fato de ser ela dotada de um aparelho genital e de uma fisiologia que, além de caracteriza-la como tal fisicamente e permitir uma modalidade de atividade sexual típica, tem também uma finalidade reprodutora, não permite considerar esta última como a principal. Toda a forma e toda a constituição humana de muito transcendem, existencialmente, as suas aparentes "finalidades" biológicas iniciais. O ser humano é um complexo biológico e psíquico, e, sendo dotado de autoconsciência, o seu lado psicológico desenvolveu-se muito além do biológico. Desta forma, o psiquismo humano nem sempre está de pleno acordo com determinados finalismos biológicos, assim como também confere novos e particulares valores a outras características da natureza de mulheres e homens. O equívoco de considerar a reprodução como a finalidade principal da sexualidade no ser humano teve a sua influência em inúmeras áreas. A nossa cultura tende a glorificar excessivamente a maternidade, considerando-a como sendo a "máxima realização feminina" e, tendenciosamente, deduzindo daí serem as mulheres "fundamentalmente destinadas" a conceber, gestar, dar à luz e criar os filhos. Esta idéia distorcida é transmitida às meninas desde a infância, e exerce considerável influência. Há, muitas vezes, uma sutil pressão social sobre os casais "cobrando-lhes" filhos. As mulheres que não têm o instinto maternal muito desenvolvido e, uma vez casadas, optam por não ter filhos, podem até sofrer algumas recriminações, ainda que de forma subliminar. Como o nosso contexto sócio-cultural tradicionalmente sempre recalcou a sexualidade ( se bem que nas últimas décadas isto venha mudando bastante ), colocou essa ênfase excessiva nos aspectos reprodutivos desta, e, consequentemente, no que se refere ao lado maternal da mulher. Essa atitude teve, inclusive, grande influência até na Medicina Feminina, gerando aquele posicionamento distorcido e arcaico que chamo de "visão obstétrica da mulher", e que implica em um considerável domínio da Obstetrícia sobre a Ginecologia, tendo esta última também se "impregnado" de uma "mentalidade obstétrica". Isto se deve, em parte, ao lamentável fato de que a Ginecologia tradicionalmente vem sendo exercida por médicos de formação basicamente obstétrica - o que, a meu ver, vem criando gravíssimos problemas para a Medicina da Mulher. Como costumo sempre salientar, a mulher possui o corpo erótico e, portanto, a sua psicologia tem, como característica marcante, um forte componente narcísico relativo à estética deste, o que se nota principalmente nas mulheres de natureza mais sofisticada. Ao mesmo tempo, este corpo é capaz de gerar e dar à luz a outro ser humano, e assim a psicologia feminina também está orientada neste sentido. Só que aqui ocorre que, para satisfazer o seu instinto maternal, a mulher tem de sacrificar em graus e intensidades variáveis o seu corpo - o que entra em choque com o seu empenho em preservar a estética, a forma, o conforto e até mesmo a saúde do mesmo. O fato é que a gravidez e o parto impõem um grande sacrifício ao corpo feminino, provocando neste, além de considerável sobrecarga fisiológica, intensas distorções e estiramentos de tecidos nem sempre completamente reversíveis ao seu estado anterior. Lamentavelmente porém, nossa cultura tende a ver e a exaltar apenas os aspectos positivos da maternidade, procurando "esconder" ou não falar nos negativos - deliberadamente "esquecendo-se", portanto, de que tudo na vida tem os seus "prós" e os seus "contras". Todos nós, ginecologistas, conhecemos muito bem diversas seqüelas que, com frequência, são decorrentes da gestação e/ou do parto : lacerações no colo uterino, rupturas perineais, afrouxamento das estruturas de sustentação do assoalho pélvico, cistoceles, flacidez e/ou estrias mamárias e abdominais, aparecimento de varizes, aumento de pêso, etc. Sendo feita uma cesárea, evitam-se os traumatismos do parto, mas fica a cicatriz cirúrgica. É claro que as mulheres também conhecem bem estas seqüelas. A maior ou menor ocorrência das mesmas ( assim como sua intensidade ) vai depender das condições específicas de cada mulher, da menor ou maior resistência e elasticidade de seus tecidos, assim como das condições de cada gravidez e cada parto. A meu ver, é este pesado sacrifício que a gestação e o parto impõem ao corpo feminino que, além de outros motivos, dá o pleno direito à mulher ao abortamento no caso de gestação não desejada. É necessário desejar muito ter um filho para que a mulher possa suportar de bom grado e com satisfação os sacrifícios e os riscos inerentes ao período gravídico e ao trabalho de parto. Como disse há pouco, as mulheres conhecem muito bem tanto os aspectos positivos, gratificantes, quanto os negativos do ter filhos, por observação e/ou experiência pessoal. Apesar disto, devido às já referidas pressões culturais que mitificam as "maravilhas" da maternidade, ocorre muitas vezes uma tendência a recalcar ou a reprimir os sentimentos tidos como "negativos" em relação à gravidez, o que gera complexos de culpa com toda a problemática psicológica decorrente. No psiquismo feminino existe sempre esse dualismo pulsional em relação a desejar e a evitar a gravidez. O predomínio de um lado ou outro, relativo ou absoluto, é que normalmente varia conforme as diversas fases da vida da maioria das mulheres. Há, porém, um fato relativamente fácil de observar: enquanto durante a maior parte do menacme da maioria das mulheres a gravidez é indesejada e evitada ( em certos casos até vista com pavor ), assim mesmo elas gostam de se saber potencialmente férteis, isto é, capazes de terem filhos - mas apenas quando o desejarem, e se desejarem. Por vezes, na clínica, observamos que algumas mulheres se "descuidam" no uso das medidas contraceptivas, e acabam engravidando "acidentalmente". Uma vez constatada a gestação, isto lhes prova que são férteis - aí então provocam o abortamento e voltam a usar os anticoncepcionais de forma correta. Este mecanismo um tanto irracional destinado a comprovar a fertilidade se passa quase sempre subconsciente ou inconscientemente. A condição feminina não é nada fácil, pois está sempre às voltas com uma complexa problemática e com situações caracterizadas pela ambiguidade. A atividade do Eros implica quase sempre em risco de gravidez; esta não sendo desejada, surge a necessidade do uso de medidas contraceptivas para eliminar ou reduzir este risco ao mínimo; assim, a preocupação em evitar a gestação acarreta outra preocupação com os diversos métodos anticoncepcionais, sejam os contraceptivos hormonais, o DIU, ou outros. Ocorrendo
uma gravidez indesejada por acidente ou descuido, a saída quase
sempre é o aborto. No caso da gravidez ser desejada, é necessário
suportar os sacrifícios físicos ( e consequentemente também
psicológicos ) inerentes ao processo para que o instinto maternal
seja satisfeito. Tudo isto tem profundas implicações no
psiquismo e na vida da mulher, e é fundamental que a Ginecologia
se empenhe no estudo da dinâmica psicológica destes processos. Nota:
Ver também "As Gestações
Indesejadas e o Direito da Mulher ao Aborto".
Nelson Soucasaux
é ginecologista, dedicado à Ginecologia Clínica,
Preventiva e Psicossomática. Formado em 1974 pela Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de
diversos trabalhos publicados em revistas médicas e dos livros
Novas Perspectivas em Ginecologia e Os
Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo
e Arquétipo, publicados pela Imago Editora, Rio de Janeiro,
1990, 1993. [ Home
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