"Gineco-Obstetrícia": O que há por trás


Nelson Soucasaux

Nelson Drawing 1982
 

Com relação às minhas severas críticas à tradicional, anti-científica e medicamente absurda prática integrada de Ginecologia e Obstetrícia pelos mesmos profissionais, ainda há muito a ser acrescentado - tanto sob o ponto de vista histórico e psico-social, como de filosofia e estratégia profissional. Como salientei no meu livro "Novas Perspectivas em Ginecologia", publicado em 1990, a Medicina da Mulher apresenta, na sua conceituação e prática, diversos erros graves que vêm desde as suas origens, e que lamentavelmente continuam a se perpetuar - e, o que é pior, a despeito da própria evolução da Medicina.

Sob o ponto de vista conceitual e psico-social, sempre que equívocos conceituais tornam-se extremamente disseminados e se institucionalizam, transformam-se no que o renomado psicólogo Charles Tart chamou de "pressupostos implícitos" e, a partir daí, deixam de ser questionados. Isto é válido para qualquer área da ciência, e constitui situação de grande perigo para a própria evolução da mesma, pois tais pressupostos atuam como verdadeiros condicionamentos ideológicos. Segundo Tart, um suposto implícito é "...um verdadeiro ato de fé...", e, "...o quanto mais um suposto permaneça implícito, opere por baixo do nível da consciência, é improvável que seja questionado, e a pessoa se acha então totalmente em seu poder" ( Tart, C. T. - "Psicologias Transpersonales - Las Tradiciones Espirituales y la Psicologia Contemporanea, tomo 1" - Paidos, Buenos Aires, 1979 ). Através deste processo, criam-se os dogmas científicos - como, no caso aqui discutido, o da vinculação da Ginecologia à Obstetrícia e à Cirurgia.

Em etapas posteriores, estes pressupostos costumam ser "racionalizados", em tentativas já conscientes de "justificá-los". Aqui é que entram diversos jogos de interesses, tanto de ideologia científica ou social, quanto de estratégia de atuação profissional, que atuam no sentido de que os posicionamentos baseados nestes equívocos sejam perpetuados. Como já disse, tudo isto se aplica perfeitamente à nossa questão da "Gineco-Obstetrícia".

No caso específico da Ginecologia, ela já nasceu com um grave "defeito congênito", devido ao infortúnio de ter surgido, na História da Medicina, a partir da Obstetrícia e da Cirurgia Geral. Por um lado, eram obstetras que passavam a se interessar pelas patologias "não-obstétricas" dos órgãos sexuais da mulher. Pelo outro, eram cirurgiões que, por motivos diversos, desenvolviam um interesse todo especial por operações no aparelho genital feminino. O incrível é que esta antiga "malformação congênita" de dupla origem vem resistindo a tudo, inclusive à própria evolução da ciência médica.

O doloroso fato é que, apesar dos extraordinários avanços ocorridos nos últimos cinqüenta anos no campo da Ginecologia Clínica, a especialidade, que há muito já deveria ter se tornado independente da Obstetrícia e da Cirurgia, continua eternamente presa a seus vícios e distorções de origem, e insiste obstinadamente em deles não se libertar. Todas as tentativas de fazer-se prevalecer a razão científica e promover-se à separação definitiva entre Ginecologia, Obstetrícia e Cirurgia Ginecológica ( ou Cirurgia Pélvica Feminina, como esta última fica melhor conceituada ) são imediatamente sufocadas pelo contexto dominante na área da Medicina da Mulher.

Tal situação anômala se mantém tanto por estar fortemente enraizada em diversas peculiaridades do equivocado contexto médico e psico-socio-cultural no qual se situa a Medicina da Mulher, como também por atender à inúmeros e inconfessáveis interesses não-médicos da imensa maioria dos profissionais que exercem a clínica feminina. Entre estes últimos está toda uma estratégia profissional que visa essencialmente aumentar e "segurar" clientela e, talvez, o que poderíamos chamar de "ânsia de onipotência" na Medicina da Mulher, levando a imensa maioria dos que a exercem ao absurdo científico de, ante a realidade superespecializada da Medicina atual, ainda insistirem em querer exercer três especialidades diferentes simultaneamente: Ginecologia, Cirurgia Ginecológica e Obstetrícia. Tal atitude é, além de cientificamente absurda, medicamente irresponsável, levando à enorme quantidade de erros médicos que vêm ocorrendo na área da Medicina da Mulher.

Visto isto, passemos agora à uma sucinta análise das razões estratégicas da obstinada perpetuação de todos estes sérios equívocos na conceituação e prática da Medicina Feminina. O fato é que, na ausência de verdadeiras razões científicas que a justifiquem às luzes da Medicina atual, o que verdadeiramente há por trás da arraigada posição que insiste em proclamar como "essencial" a costumeira "fusão" Ginecologia-Obstetrícia é, sobretudo, uma estratégia profissional muito bem urdida no exercício da clínica feminina. E, o que é pior, disfarçada por trás de justificativas pseudo-científicas e pseudo-lógicas, e ainda por cima contando com o apoio de poderosas entidades médicas, que cada vez mais agem com a força de verdadeiros cartéis !

E o incrível é que as "razões" da estratégia são, na realidade, espantosamente simples ! O que de fato ocorre é o seguinte: atualmente, uma mulher moderna costuma ter, no máximo, 2 a 3 filhos em toda a vida. Vejamos então: uma mulher que tenha 3 filhos, terá ao todo 3 ciclos gravídicos e 3 partos, durante os quais será assistida pelo obstetra. Contando cerca de 10 meses para cada ciclo gravídico-puerperal, é fácil constatarmos que um obstetra exclusivo só terá esta mulher como cliente durante 30 meses, pois durante o restante da sua vida ela ficará como cliente dos ginecologistas.

Assim, torna-se do maior interesse dos obstetras também fazerem Ginecologia, tanto para não perderem as clientes após o parto, como também para aumentarem o movimento no consultório. Pelo outro lado, ante esta concorrência dos obstetras, surge, em consequência, o interesse dos ginecologistas em também fazerem Obstetrícia, para evitarem o risco de perder as clientes que, engravidando, teriam de ser encaminhadas aos obstetras. Extremamente simples, não ? Desta forma, acrescido de outros fatores, perpetua-se este grande equívoco médico chamado "Gineco-Obstetrícia" ou "Toco-Ginecologia"...

Para uma análise minuciosa deste assunto, ver o meu já citado livro "Novas Perspectivas em Ginecologia". Neste site, ver também "A Tradicional Vinculação da Ginecologia à Obstetrícia e à Cirurgia: Arraigado condicionamento vindo do passado e destituido de fundamentos científicos" e "A Estratégia Obstétrica na Medicina da Mulher" ( ambos à página "Temas Polêmicos" ), e "A Obstinação Gineco-Obstétrica".



Nelson Soucasaux é ginecologista, dedicado à Ginecologia Clínica, Preventiva e Psicossomática. Formado em 1974 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de diversos trabalhos publicados em revistas médicas e dos livros "Novas Perspectivas em Ginecologia" e "Os Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo e Arquétipo", publicados pela Imago Editora, Rio de Janeiro, 1990, 1993.



 

[ Home ] [ Consultório ] [ Obras Publicadas ]
[ Novas Perspectivas em Ginecologia ] [ Os Órgãos Sexuais Femininos ]
[ Temas Polêmicos ] [ Tópicos Diversos Parte 1 ] [ Tópicos Diversos Parte 2 ]
[ Tópicos Diversos Parte 3 ] [ Ilustrações ]




Email: nelsons@nelsonginecologia.med.br