A Obstinação "Gineco-Obstétrica"...
...e a perpetuação de um dos maiores erros da Medicina da Mulher

Nelson Soucasaux

 
 

Como observei no meu livro "Novas Perspectivas em Ginecologia", contrariamente ao que muitos supõem, a intromissão de obstetras e cirurgiões na Ginecologia sempre foi, ao longo dos tempos, um dos aspectos mais problemáticos da Medicina da Mulher. Os obstetras, obviamente, têm seu interesse principal dirigido para a mulher grávida. Vêem a mulher através da ótica da Obstetrícia - especialidade que, aliás, como Medicina da Mulher, de muito a ultrapassa, por também se dedicar ao concepto. ( A este respeito, vide o enorme desenvolvimento da Medicina Fetal, novo ramo da Obstetrícia. ) Saliente-se também que a Obstetrícia cuida da mulher apenas em períodos muito peculiares da sua vida, períodos nos quais ela abriga no seu corpo outro ser que não é ela, mas que é igualmente objeto de atenção da especialidade. Só aqui já temos uma enorme diferença entre Ginecologia e Obstetrícia, visto que a Ginecologia cuida apenas da mulher.

Considerando-se que a maioria das mulheres modernas apenas desejam gestar e ter filhos, assim como o fazem, em pouquíssimos momentos no todo de suas vidas, torna-se óbvio que a Obstetrícia é especialidade que cuida da mulher em momentos de exceção - contrariamente à Ginecologia, que o faz durante a maior parte da vida da mesma. Assim, em decorrência tanto da necessidade de aumentarem o movimento no consultório, quanto da frequente "ânsia de onipotência" que acomete a Medicina da Mulher, os obstetras não abdicam nunca de também "entrarem" na Ginecologia. Trata-se, na realidade, de uma muito bem construida "estratégia" de atuação profissional, visando "segurar" a clientela por todos os lados - ainda que frequentemente em detrimento da qualidade da assistência médica prestada, visto ser humanamente impossível, às luzes da complexidade da Medicina atual, um mesmo médico exercer duas especialidades diferentes com a necessária competência.

Em "Novas Perspectivas em Ginecologia" deixei mais do que claro que as enormes diferenças entre Ginecologia e Obstetrícia se referem fundamentalmente aos seus respectivos aspectos clínicos, fisiológicos, patológicos e terapêuticos, que são completamente diversos - além do fato óbvio de que, enquanto a Ginecologia cuida apenas da mulher, a Obstetrícia cuida da mulher e do concepto. Tudo isto faz com que ambas constituam, sem qualquer possibilidade de dúvida razoável, especialidades à parte. Deve ficar claro que todos os habituais argumentos em contrário são totalmente destituidos de fundamentos científicos, visando sobretudo preservar a "tradição" e inconfessáveis interesses corporativos.

Considerando-se os imensos avanços técnico-científicos da Medicina atual, torna-se humanamente impossível um mesmo médico dominar simultaneamente com competência satisfatória duas especialidades tão complexas e tão diferentes como Ginecologia e Obstetrícia. Assim mesmo, a irracional insistência no exercício integrado das duas pelo mesmo profissional persiste... A meu ver, isto chega a configurar atitude tipicamente "delirante" e megalomaníaca. E o pior é que tal atitude vem sendo cada vez mais incentivada e "oficializada" por sociedades de Gineco-Obstetras que, com crescente obstinação e poder político, pregam a continuidade da cientificamente irracional fusão das duas especialidades.

Lamentavelmente, grande parte das mulheres, por desconhecerem os problemas decorrentes desta tradicional "fusão" entre Ginecologia e Obstetrícia, ingênuamente consideram como "ideal" a prática integrada de ambas. Este erro é compreensível por parte da clientela, mas imperdoável por parte da classe médica. Aliás, na visão do leigo, algumas vezes Ginecologia e Obstetrícia até mesmo "se confundem", pois a imensa maioria dos profissionais que exercem a Medicina da Mulher se apresentam como "ginecologistas e obstetras"... Os colegas são, portanto, os que mais colaboram para manter esta "confusão", uma vez que, por interesse próprio, procuram atender às ingênuas e equivocadas "idealizações" da clientela. É claro que, profissionalmente, a comunidade "gineco-obstétrica" ou "tocoginecológica" só sai ganhando com isto, enquanto as clientes perdem e sem saber que estão perdendo... Em decorrência de tudo isto, em termos de concorrência profissional, existe também um sutil processo de "exclusão" dos ginecologistas que, de forma cientificamente lúcida, não fazem Obstetrícia.

Nota 1: Vivemos época em que o acúmulo de conhecimento médico técnico cada vez mais restringe as possibilidades de atuação plena de cada profissional dentro da sua especialidade, uma vez que as próprias especialidades estão em um contínuo processo de divisão em subespecialidades. Desta forma, o tradicional "hábito" da prática de Ginecologia, Cirurgia Ginecológica e Obstetrícia pelo mesmo médico torna-se cada vez mais inviável e absurdo por implicar, de fato, no exercício de três especialidades diferentes pelo mesmo profissional. Será possível, dentro dos limites humanos - tanto cognitivos, quanto de treinamento e educação continuada - um mesmo médico exercer estas três áreas com a devida competência ?

Nota 2: Quanto à referida "ânsia de onipotência" na Medicina da Mulher, ela se revela claramente no fato de quase todos que a ela se dedicam insistirem em exercer Ginecologia, Cirurgia Ginecológica e Obstetrícia - ou seja, três especialidades diferentes simultaneamente. Para um melhor entendimento de tudo o que aqui foi exposto, ver o capítulo "O Impasse na Medicina da Mulher", do meu livro "Novas Perspectivas em Ginecologia". Neste site, ver também os tópicos "A Tradicional Vinculação da Ginecologia à Obstetrícia e à Cirurgia : Arraigado condicionamento vindo do passado e destituido de fundamentos científicos" e "A Estratégia Obstétrica na Medicina da Mulher" ( ambos à página "Temas Polêmicos" ), e "Gineco-Obstetrícia: O que há por trás".



Nelson Soucasaux é ginecologista, dedicado à Ginecologia Clínica, Preventiva e Psicossomática. Formado em 1974 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de diversos trabalhos publicados em revistas especializadas e dos livros "Novas Perspectivas em Ginecologia" e "Os Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo e Arquétipo", publicados pela Imago Editora, Rio de Janeiro, 1990, 1993.





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Email: nelsons@nelsonginecologia.med.br