"Síndrome dos Ovários Policísticos"


Nelson Soucasaux

Nelson Drawing 1979
 

Com intensidades, graus e manifestações clínicas variáveis, a chamada "síndrome dos ovários policísticos" constitui um distúrbio funcional e endócrino bastante freqüente na clínica ginecológica. Apesar de fundamentalmente causado por diversas alterações no funcionamento dos intrincados mecanismos do eixo hipotálamo-hipófise-ovários e algumas vezes também incluindo alterações em outras áreas do sistema endócrino, a Ginecologia ainda insiste em tentar descobrir qual deva ser a "causa fundamental" deste complicado distúrbio. O lamentavelmente poderoso enfoque reducionista que cada vez mais domina a medicina atual é o responsável por este tipo de atitude, fazendo com que muitos colegas se esqueçam de que, na realidade, em vez de "causas únicas" ou "fundamentais" para muitas patologias, nelas sempre há uma multiplicidade de fatores e "causas" que interagem entre si, resultando no estabelecimento da maioria das disfunções e doenças. Acredito que isto também seja verdadeiro para a ainda misteriosa "síndrome dos ovários policísticos".

Também tenho algumas reservas com relação à denominação "ovários policísticos" para esta disfunção, visto que ela causa uma considerável confusão conceitual nas clientes. Na minha opinião, esta condição seria muito melhor definida como "ovários polimicrocísticos", considerando-se que os cistos foliculares nela encontrados são muito pequenos e não alcançam o tamanho dos folículos maduros dos ciclos ovarianos normais. Uma breve explicação acerca do que ocorre ao longo dos ciclos normais torna-se necessária aqui. Durante o menacme ( o período da vida em que as mulheres menstruam ), vários folículos em diversos estágios do seu crescimento e involução são fisiologicamente encontrados nos ovários, de acordo com a fase do ciclo. Eles são facilmente detectáveis à ultrassonografia como "cistos foliculares", e seu tamanho varia dentro de uma média de 5 a 10 -15mm. Os folículos que têm a possibilidade de ovular ( usualmente denominados folículos maduros ) podem alcançar o tamanho de 20 a 25mm. Assim sendo, a presença nos ovários de "cistos foliculares" é um evento normal ao longo de todo o menacme. Por este motivo, de certa forma podemos considerar os ovários como sendo freqüentemente órgãos "policísticos", de acordo com a fase do ciclo.

A propósito, no que se refere aos cistos ovarianos em geral, cabe observarmos que, durante o menacme, apenas cistos com mais de 30-35mm de diâmetro requerem atenção médica especial. Contrariamente, na pós-menopausa todos os cistos ovarianos exigem grande atenção e devem ser cuidadosamente investigados, visto que, nesta fase da vida, a possibilidade de cistos foliculares funcionais não mais existe devido ao completo esgotamento da população folicular dos ovários, e também porque, nesta fase, a incidência do câncer ovariano se torna maior ( Nota 1 ).

Retornando ao nosso assunto principal e considerando-se o que foi aqui exposto, o que, de fato, ocorre na comumente chamada "síndrome dos ovários policísticos" ? Uma das respostas é : nesta disfunção, em decorrência das suas diversas causas, o crescimento de todos os folículos é prematuramente interrompido, e nenhum deles usualmente alcança o estágio de folículo maduro. O resultado é anovulação crônica e a presença de um grande número de folículos formando pequenos cistos ( com cerca de 5 a 8mm ), quase sempre associados a uma típica alteração hiperplásica do estroma ovariano denominada hipertecose. A túnica albuginea ovariana ( o fino revestimento fibroso externo dos ovários ) se encontra espessada, e os ovários tornam-se bilateralmente aumentados conforme o distúrbio se agrava. É importante salientarmos que só se pode falar em "síndrome dos ovários policísticos ou polimicrocísticos" na presença de todas estas alterações. A ultrassonografia dos ovários usualmente acusa a presença de muitos pequenos cistos foliculares sempre associados a uma densidade aumentada do tecido ovariano e, quase sempre, a um aumento bilateral destes órgãos.

As mais freqüentes manifestações clínicas da "síndrome dos ovários policísticos" são: 1) ciclos longos ( oligomenorréia ) e/ou episódios de amenorréia; 2) crescimento excessivo de pêlos em diversas partes do corpo ( hipertricose ou hirsutismo ), freqüentemente associado à acne; 3) anovulação crônica e infertilidade ( ainda que raras e ocasionais ovulações possam ocorrer ). Algumas mulheres demonstram uma tendência à ganho de peso ou até mesmo à obesidade. Os distúrbios menstruais podem também incluir episódios de sangramento uterino excessivo ( hipermenorréia e/ou menorragia ).

Como já mencionei antes, a "síndrome dos ovários policísticos" é o resultado final de uma série de distúrbios no eixo hipotálamo-hipófise-ovários, algumas vezes também envolvendo outras alterações endócrinas. Os distúrbios do ciclo ovariano, principalmente caracterizados por anovulação, oligomenorréia e/ou amenorréia, se devem a uma falha nos extremamente complexos mecanismos de feedback entre os ovários e o sistema hipotálamo-hipofisário, com uma conseqüente perda do típico caráter cíclico que caracteriza a função ovariana normal. Níveis sangüíneos aumentados de LH ( hormônio luteinizante ), relativos ou absolutos, podem ser encontrados, e o pico ovulatório desta gonadotrofina está quase sempre ausente ao longo dos ciclos. Em termos comparativos, os níveis basais de LH com freqüência encontram-se significativamente maiores do que os do FSH ( hormônio folículo estimulante ).

A hipertricose e/ou hirsutismo, assim como a acne, são uma conseqüência dos níveis aumentados de androgênios ( androstenediona e testosterona ) freqüentemente produzidos pelos "ovários policísticos". Uma breve explicação acerca da síntese dos hormônios sexuais nos ovários torna-se necessária aqui. Devido a uma curiosa peculiaridade bioquímica, fisiologicamente os hormônios femininos ( estrogênios ) são sempre produzidos tendo hormônios masculinos ( androgênios ) como precursores. Isto significa que, para produzir os seus estrogênios ( os hormônios da feminilidade ), as mulheres têm que, previamente, produzir androgênios. Nos folículos ovarianos, os androgênios androstenediona e testosterona são respectivamente transformados nos estrogênios estrona e estradiol. Os androgênios ovarianos são produzidos sob a estimulação do LH, e sua transformação em estrogênios se dá sob a estimulação do FSH.

Por diversas razões ainda não inteiramente esclarecidas, na "síndrome dos ovários policísticos" ocorre uma excessiva produção de androgênios, causando a hipertricose, hirsutismo e acne. Esta produção elevada de androgênios pelos ovários também inibe o processo normal da maturação folicular, colabora para manter o distúrbio acíclico do sistema hipotálamo-hipofisário e os resultantes níveis alterados de LH. Estes níveis elevados de LH, por sua vez, estimulam a já mencionada hipertecose ovariana e o conseqüente aumento bilateral destes órgãos, agravando o distúrbio e tornando a produção de androgênios pelos ovários cada vez maior. Desta forma, o resultado final é o estabelecimento de um ciclo vicioso. Devemos também atentar para que, em alguns casos de "ovários policísticos", uma secreção aumentada de androgênios pelas glândulas supra-renais também pode estar presente ( Nota 2 ).

Entretanto, devo enfatizar que nem todas as mulheres com hipertricose ( principalmente quando leve ou moderada ) apresentam níveis elevados de androgênios ou "ovários policísticos". Em muitos destes casos, os níveis androgênicos encontram-se dentro do normal e o aumento de pêlos se deve a uma sensibilidade aumentada dos folículos pilosos à estes níveis normais de androgênios. Estes casos constituem o que se costuma chamar de "hipertricose ou hirsutismo constitucional".

Atualmente, algumas alterações no metabolismo da insulina ( principalmente a denominada "resistência à insulina" ) têm sido encontradas em diversas mulheres com "ovários policísticos". Estes achados têm feito muitos pesquisadores passarem a atribuir considerável importância a esta "resistência insulínica" na gênese da síndrome, e eles afirmam que este distúrbio metabólico pode causar um aumento na produção ovariana de androgênios. Entretanto, a meu ver, esta nova teoria sobre a "origem" da intrincada e multifatorial "síndrome dos ovários policísticos" apenas revela mais um aspecto do distúrbio. Assim mesmo, o fato é que esta associação entre casos de "síndrome dos ovários policísticos" e distúrbios no metabolismo da insulina constitui um tema inteiramente novo para a Ginecologia Endócrina, e atualmente muitos pesquisadores estão conduzindo estudos detalhados a respeito.

Finalizando, devo enfatizar que o correto diagnóstico de "ovários policísticos ou polimicrocísticos" exige, como procedimentos mínimos, uma cuidadosa análise das manifestações clínicas, uma meticulosa avaliação funcional e endócrina e um acurado exame ultrassonográfico dos ovários. Existem e têm existido diversos tratamentos para as múltiplas manifestações da "síndrome dos ovários policísticos" e, usualmente, os tratamentos específicos a serem utilizados vão depender daqueles aspectos da síndrome que mais incomodam e afetam cada paciente.

Nota 1: Outra explicação relativa aos cistos ovarianos em geral torna-se muito importante aqui. Resumidamente podemos dizer que existem, basicamente, dois tipos de cistos ovarianos: os funcionais e os neoplásicos. Os cistos funcionais se originam a partir dos folículos ovarianos ( e, algumas vezes, do corpo lúteo ), e incluem não só os folículos ovarianos normais no seu usual processo de crescimento ao longo do ciclo, mas também folículos que, devido a distúrbios funcionais, tornam-se excessivamente aumentados. Pelo outro lado, a maioria dos cistos neoplásicos não se originam dos folículos ovarianos, sendo sua estrutura histológica muito diferente das destes folículos. Algumas vezes cistos neoplásicos podem se tornar malignos. Enquanto o tratamento dos cistos funcionais é clínico ( e alguns deles podem até mesmo diminuir e desaparecer espontaneamente ), o tratamento dos neoplásicos é cirúrgico. Quanto ao nosso assunto principal, é fundamental que fique claro que os cistos encontrados na "síndrome dos ovários policísticos" são funcionais.

Nota 2: Enquanto alguns autores acreditam que o distúrbio original ou "primário" responsável pela "síndrome dos ovários policísticos" se encontra a nível ovariano, outros acreditam que ele esteja a nível hipotálamo-hipofisário. Porém, o fato é que, como já foi aqui dito, tanto a função ovariana quanto a hipotálamo-hipofisária encontram-se profundamente alteradas, criando um ciclo vicioso. Além do distúrbio funcional, os ovários também exibem, como já vimos, consideráveis alterações histológicas e morfológicas, caracterizadas sobretudo pela hipertecose ( hiperplasia do estroma ovariano ) e pelo aumento bilateral destes órgãos. Como também já observamos, uma produção excessiva de androgênios pelas supra-renais ( hiperplasia androgênica das supra-renais ) pode também ser responsável por alguns casos de "ovários policísticos", e algumas vezes ambas as condições podem estar associadas.



Nelson Soucasaux é ginecologista, dedicado à Ginecologia Clínica, Preventiva e Psicossomática. Formado em 1974 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de diversos trabalhos publicados em revistas médicas e dos livros "Novas Perspectivas em Ginecologia" e "Os Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo e Arquétipo", publicados pela Imago Editora, Rio de Janeiro, 1990, 1993.




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